Em 17 de dezembro de 1940, Blemie, o amado dálmata de Eugene O’Neil, morreu na Califórnia. Uma semana depois, Eugene – um famoso escritor e dramaturgo – escreveu um tributo ao seu amado cão, na forma de uma última vontade e testamento, dando a impressão de que Blemie tinha deixado este texto na mente de seu mestre antes de morrer. 

Os amantes de animais, principalmente aqueles que têm um carinho especial por cães serão movidos por um encantamento particular com este texto, que provoca sorrisos e lágrimas ao mesmo tempo. Eu diria que esta é uma pequena joia rara. Uma preciosidade! 

Com um texto comovente e atemporal, O’Neill descreve claramente os sentimentos de perda experimentados por todo e qualquer dono de cão. Essa mensagem de amor, amizade e carinho é uma inspiração para quem enfrentou ou terá de enfrentar o fim da vida de um amigo tão querido. Uma mensagem de conforto e consolo que permanecerá em sua mente.

 

Eu, Silverdene Emblem O’Neil (a quem minha família e amigos chamam de Blemie), sentindo o peso dos anos e das enfermidades que me acometem e sabendo que minha vida está chegando ao fim, venho por meio desta cravar meu último desejo e testamento na lembrança de meu dono. Ele não saberá de sua existência até o dia de minha morte. Só então, quando se recordar de mim em sua solidão, tomará conhecimento deste testamento que lhe peço gravar num memorial para mim.

Quase nada deixo de bens materiais. Os cães são mais sábios que os homens. Eles não dão muito valor às coisas. Eles não consomen seus dias acumulando bens. Eles não perdem o sono, preocupados em perder os objetos que possuem, muito menos adquirindo aquilo que não precisam. Por isso, nada deixo de valor, exceto meu amor e minha fidelidade. Estes, eu lego a todos aqueles que me amaram. Ao meu dono e minha dona, que eu sei lamentarão mais a minha morte. À Freeman, que tem sido tão bom comigo. À Cyn e Roy, e também à Willie e Naomie e… Bem, se eu fosse listar todos os que me amam, meu dono seria obrigado a escrever um livro.

Talvez seja presunção elogiar a mim mesmo quando estou tão perto da morte, que retorna ao pó todos os seres e suas vaidades. Mas, em toda a minha vida, eu fui um cão extremamente amado.

Peço ao meu dono e a minha dona que se lembrem sempre de mim, mas que não chorem a minha morte por muito tempo.

Durante minha vida sempre procurei consolá-los em momentos de tristeza e ser um motivo a mais de alegria para a felicidade de ambos. É doloroso pensar que minha morte possa lhes causar dor. Quero que eles se lembrem de que nenhum cão teve vida mais feliz que a minha, e isso devo ao amor e carinho que tiveram por mim. Mas agora que fiquei cego, surdo e manco (e até mesmo meu faro me falta a ponto de não perceber um coelho bem debaixo do meu nariz), meu orgulho se transformou em uma confusa e doentia humilhação.

Sinto que a vida está zombando de mim ao deixar-me aqui por mais tempo que o conveniente. É hora de dizer adeus antes que eu me torne um fardo para aqueles que me amam. É triste ter que deixá-los, mas não é triste morrer. Os cães não temem a morte como os homens. Nós a aceitamos como parte integral da vida, não como algo estranho e terrível que a destrói.

O que vem depois da morte, quem sabe? Eu gostaria de acreditar, como meus companheiros dálmatas, maometanos devotos, em um paraíso onde os cães permanecem sempre jovens e cheios de vida. Onde todos os dias se pode brincar e se divertir com uma multidão de ninfas amorosas e maravilhosamente pintadas como nós, os dálmatas. Onde tantos coelhos como as areias do deserto correm rápido, mas não tão rápido, mais como as ninfas. Onde cada hora bem-aventurada seja a hora da refeição. Onde, nas longas noites, haja milhares de lareiras com lenha queimando e que possamos nos aninhar e nos aquecer nas chamas e nos sonhos, lembrando os velhos e bravos dias na Terra, e o amor de nossos donos.

Porém, temo que isso seja esperar demais para um cão assim como eu. Mas a paz, pelo menos, é certa.  Paz e um longo repouso para um velho e cansado coração, cabeça e membros fracos, além do sono eterno na terra que tanto amei. Talvez isto seja, afinal, o melhor para mim.

Faço um último e sincero pedido. Tenho ouvido minha dona dizer: “Quando Blemie morrer, nós nunca mais teremos outro cachorro. Eu o amo tanto que jamais poderia amar outro”. Agora eu gostaria de pedir a ela que, por amor a mim, tenha outro cão. Não tê-lo seria um pobre tributo a minha memória. Eu ficaria feliz de saber que, depois de mim, ela não poderia mais viver sem um amigo como eu. Afinal de contas, nunca tive um espírito ciumento e limitado.

Eu sempre achei que a maioria dos cães é boa (e até permiti que um gato, o preto, dividisse comigo o tapete da sala de visitas, à noite, cuja afeição eu tolerei com gentileza, e chegando, inclusive, a devolver-lhe afeto, em raros momentos de sentimentalismo).

É claro que alguns cães são melhores que outros. Os dálmatas, naturalmente, como todos sabem, são os melhores. Por isso, eu sugiro que o meu sucessor seja um dálmata. Ele dificilmente será tão bem-educado, comportado, simpático e belo quanto eu fui nos meus bons tempos. Meu dono e minha dona não devem querer o impossível. Mas ele fará o seu melhor, tenho certeza, e mesmo seus inevitáveis defeitos ajudarão a me manter vivo na memória de meus donos.

Para ele, eu deixo minha coleira e guia e minha capa de chuva, feitos sob medida em 1929, na Hermés, Paris. Ele nunca saberá usá-los com o mesmo glamour que eu tive, ao caminhar pela Place Vendôme, ou, mais tarde, ao longo da Park Avenue, com olhares elogiosos fixos em mim. Mas novamente estou certo de que ele se esforçará ao máximo para não parecer um mero cão provinciano.

Aqui no rancho, ele poderá ser muito útil em alguns aspectos. Ele poderá, eu presumo, pegar muito mais coelhos do que eu fui capaz nos últimos anos. E, apesar de seus defeitos, desejo-lhe toda a felicidade que eu sei que ele terá na minha velha e amada casa.

Uma última palavra de adeus, meus queridos donos. Quando forem visitar meu túmulo, digam com pesar, mas também com toda a alegria que existe em seus corações, em memória a vida longa e feliz que tive junto de vocês: “Aqui jaz aquele que muito nos amou e a quem amaremos para sempre”.

Não importa o quão profundo seja o meu sono, eu os ouvirei. E nem todo o poder da morte poderá impedir o meu espírito de abanar o rabo em sinal de gratidão.